MARA CORNELSEN
Em uma época em que o microfone era território masculino, ela, com postura firme e salto alto, se tornou a primeira e mais reconhecida jornalista policial do Paraná.
A história de Mara Cornelsen é uma verdadeira ode ao jornalismo investigativo, e à força da mulher numa época em que a redação era dominada pelos homens. Imagine só: Uma mulher que, desde menina, já dava sinais de que sua vida seria dedicada às palavras. Aprendeu a ler praticamente sozinha, escrevendo em papéis de pão com tocos de lápis que o pai, contador, trazia do escritório. Aos 13 anos já escrevia peças de teatro no estilo barroco: “Eu escrevi uma peça de teatro, em três atos no estilo barroco, porque eu não podia sair pra pesquisar, minha mãe não deixava sair de casa, e eu precisava apresentar alguma coisa na escola, então eu mesma sentei e escrevi. …. eu amava escrever. E fui crescendo e pensando que eu queria ser escritora, era o meu grande sonho, mas nada me mostrava o caminho…. E daí, me informando, pesquisando, eu achei que jornalista era a coisa que mais teria possibilidade de me transformar em escritora.”
Mas não foi tão fácil assim. Mara teve que driblar a resistência do pai, que não considerava a profissão de jornalista adequada para a filha: “Falei para o meu pai, com 14 anos: Eu vou ser jornalista, vou fazer o vestibular para jornalismo. Ele respondeu: Nem pensar, de jeito algum, você está proibida, faça qualquer coisa, menos jornalismo! Toda jornalista mulher é prostituta, é vulgar, todo jornalista homem é um bêbado, e você não vai entrar nesse meio. Eu fiquei frustradíssima, mas não tirei a ideia da cabeça. Terminei o ensino médio com 16 anos e, em seguida, prestei o vestibular.”
UM PEIXE FORA D’ÁGUA
Com muita conversa, o pai de Mara se rendeu à paixão da filha, que se formou em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná, mas não sem muito esforço da então estudante, que se sentiu um peixe fora d’água quando finalmente encarou o tão sonhado curso: “A gente estava saindo da ditadura, só tinha homens formados, barbudos e enormes na minha turma, uma ou outra menina, e era uma turma de homens muito politizados. E eu era um peixe fora d’água, porque eu tinha saído do ensino médio, tinha feito curso de técnico e secretariado. Que contraste, né? E me via no meio daquele povo…. prestando atenção nos meus amigos, eu me sentia constrangida, porque eu ia de tênis e minissaia, camiseta e meia soquete, cabelo compridinho… Uma criança no meio daqueles adultos falando de política, de ditadura, de morte, de perseguição e tal. Foi muito complicada essa transição para mim, de sair do ensino médio, já ir para uma faculdade, fim de ditadura, e aprender tudo aquilo que eles ensinavam”.
Mas ela se adaptou tão bem que até conseguiu uma façanha: concluiu o curso em tempo recorde: 3 anos! Mara se inscreveu em várias matérias, e se dedicando aos artigos e trabalhos da faculdade pela manhã, de tarde e de noite, conseguiu adiantar um ano de curso, e se formou em 1979, quando ainda não tinha completado 20 anos. A essa altura, o pai, que a princípio não via com bons olhos a profissão escolhida pela filha, já havia se convencido que o talento de Mara não podia ser abafado, e ela lembra com carinho da mudança de postura dele, que até deu uma festa em sua formatura. “No final da vida dele… ele já faleceu há mais de 20 anos… ele virou o meu maior fã. Ele tinha o maior orgulho de me apresentar para os amigos dele. Eu tenho uma filha jornalista. Ela escreve na tribuna. Ela trabalha em rádio. Ela faz assessoria…. Ele tinha um orgulho danado disso, sabe? Foi muito bacana essa transformação dele…”
O INÍCIO
O primeiro contato de Mara com uma redação foi em 1979, quando foi fazer estágio em um jornal do grupo de Paulo Pimentel. Era o impresso Tribuna do Paraná. O estágio só durou 3 meses. Logo em seguida, foi convidada para ingressar no Diário do Paraná, em 1980. Aí, sim, começou sua trajetória no jornalismo policial: “Lá, eu fui para a reportagem geral, conheci o Jorge, (fotógrafo Jorge Graff). Aí, o Cabral, o Luiz Augusto Cabral, era o repórter policial do Diário do Paraná…. Tinha uma equipe de homens na Tribuna, uma equipe de dois homens na Gazeta do Povo… e no Diário do Paraná era só o Cabral…. a família dele era de Manaus. Fazia três anos que ele não conseguia ver os pais, porque não tinha quem substituir, sem ele no jornal, ninguém queria fazer policial. Quando ele viu que eu era rápida, sou datilógrafa, eu faço uma matéria em 15 minutos, com os pés nas costas… e era esperta, e me virava, e dava risada, era uma pessoa comunicativa… Ele chegou para mim e disse: Mara, faz para mim um mêsinho de policial? Eu falei: tá!”.
Apesar do medo inicial, Mara mergulhou de cabeça no mundo das delegacias, do IML e das ruas, sempre acompanhada do fotógrafo Jorge Graff, seu “professor de rua”, como ela lembra com carinho e gratidão. Juntos, desvendaram crimes e deram furos de reportagem nos jornais concorrentes, a Gazeta do Povo e a Tribuna do Paraná.
De minissaia, salto alto e muita coragem, Mara enfrentou o machismo e a desconfiança de colegas e alguns policiais, mostrando que jornalismo se faz com trabalho duro, persistência e um talento nato para farejar a notícia. Ela era incansável, passava horas nas ruas, “suava a camisa” em busca de informações e não tinha medo de desafiar autoridades. Certa vez, Mara presenciou uma briga entre policiais civis e militares e, ao defender um bêbado que havia sido preso na confusão, e em seguida ir até a delegacia contestar e questionar a prisão do homem, conta que foi proibida de entrar na repartição policial. Mas ela não se intimidou e continuou a fazer seu trabalho, buscando informações com colegas e fazendo plantão na porta da delegacia, todos os dias, o que não agradou muito o delegado da época: “E eu sei que eu fui proibida. E todos os dias eu voltava. Até que o delegado escreveu uma carta pro jornal. Dizendo que havia me proibido de entrar na delegacia. Porque eu era um atentado violento ao pudor. Pelas roupas indecentes que eu usava. Porque eu andava de minissaia. E de salto. E de vestido. Super feminina. Maquiada. Nunca deixei de ser assim. Nunca. E aí pra se vingar, ele fez essa carta malcriada pra direção do jornal. Pra me desmoralizar completamente…disse que as funcionárias, as secretárias da delegacia tinham vergonha quando eu chegava. Porque elas não sabiam nem onde enfiar a cara pelas roupas escandalosas que eu usava. E não sei o que mais… E claro, pediu a publicação da carta. Aí o diretor do jornal me chamou, e disse: Olha a carta que o cara mandou. Eu falei: Bom, eu acho que você tem que dar um direito de resposta pra ele, mas não essa parte em que ele fala das minhas roupas. Porque isso aí é uma coisa pessoal. Não tem nada a ver com o que aconteceu… A gente publicou a carta dele. Mas metade da carta só tinha a ver com o fato em si. Não com as minhas roupas e coisas assim”.
O jeito seguro e cheio de personalidade de Mara encantava e abria portas, mas também não agradava a muitos, especialmente àqueles que se prendiam às convenções impostas por uma sociedade que gostava de ditar o modo de ser, de se vestir, de falar, especialmente das mulheres. Mas ela não se deixava abater pelos comentários maldosos e invejosos. Sua resposta era sempre dar mais um furo de reportagem, mostrando a todos que seu sucesso era fruto de talento e dedicação. “Eu criei uma barreira com relação a isso, sabe? Não vão me atingir”, dizia ela.
Seu talento logo foi descoberto pelo rádio, que virou outra paixão da jornalista. Logo após sua entrada na Tribuna, em 1980, ela foi convidada a integrar a equipe de um programa na Rádio Universo, apresentado pelo famoso radialista José Maria Pizarro. Mara, com seu jeito irreverente, chegava na rádio pilotando sua moto “oitentinha”, de macacão de motoqueira, e minissaia por baixo, arrancando olhares por onde passava. Sua estreia no rádio foi memorável: “E agora, as notícias policiais da nossa cidade, com a jornalista Mara Cornelsen!. Bom dia, pessoal!”, anunciava José Maria Pizarro com sua voz de trovão”, lembra Mara. Ela, por sua vez, com a voz ainda em formação, conta ter tremido de nervosismo: “ Tremendo, tremendo, porque eu não tinha a menor experiência em rádio, mas eu sempre fui muito corajosa. Então, era uma voz ridícula, de criança, falando de polícia, de crime, de assassinato, de acidente, sabe?”
A experiência na Rádio Universo, apesar de curta, marcou o início da trajetória de Mara no veículo. E como nunca negou um desafio, mesmo tendo uma estreia insegura, ela aprendeu rápido, e continuou a se aventurar pelas ondas radiofônicas, trabalhando em diversas emissoras, como Rádio Independência, Rádio Clube e em uma emissora na região de São José dos Pinhais. Em cada uma delas, Mara deixava a mesma impressão: uma jornalista talentosa, com faro para notícia, e uma personalidade marcante.
Anos mais tarde, Mara ingressou na Rádio Cultura, a rádio do governo do Paraná, também chamada na época de Rádio Estadual, já que havia começado a operar nas dependências do Colégio Estadual do Paraná. Ela havia sido transferida para lá após a criação da Agência Estadual de Notícias, durante o governo de Roberto Requião. Mara, que não queria se envolver diretamente com o governo, acabou encontrando na Rádio Cultura, hoje chamada de Paraná Educativa 97.1 FM, um espaço para continuar exercendo sua paixão pelo jornalismo. Com o passar dos anos, Mara se consolidou como uma das vozes mais importantes do rádio paranaense. Sua participação em programas policiais era sempre aguardada pelos ouvintes, que admiravam sua coragem, seu conhecimento, e sua forma única de contar os casos que descobria ou estava acompanhando. A área policial acabou por revelar o talento investigativo dessa talentosa comunicadora, e se transformou em sua marca registrada. Afinal, o trabalho que começou só como um favor, o de cobrir as férias do colega que fazia as matérias policiais, se transformou na especialidade de Mara Cornelsen. “eu fui sendo talhada para aquilo, né? Eu fui aprender o Código Penal na marra, eu fui aprender a hierarquia das polícias, militar, civil, de justiça, disso e daquilo, tudo no dia a dia. Fazendo, né? Dava minhas patadas, minhas bolas fora, pedia desculpa, eu não nasci sabendo, estou aprendendo e sempre, tive essa humildade de dizer que estou aprendendo. Como eu aprendo até hoje. Cada coisa, cada pessoa que vem ter comigo, que vem falar comigo, me ensina alguma coisa.”
SER MULHER NO JORNALISMO POLICIAL
Apesar de dizer que criou uma certa “blindagem” contra comentários maldosos a respeito do seu trabalho, e sua personalidade espontânea, que incomodava muitos colegas e entrevistados, Mara não nega o grande desafio de prosperar como jornalista, em uma área raramente escolhida, ou confiada à uma mulher no tempo que exerceu a carreira: “Ser mulher já é uma questão. Ser mulher bonita é pior ainda, né? Porque tem essa coisa de que pode abrir portas, mas também tem uma subestimação muito maior, né? De acharem que você dormia com os delegados, né? Eu nunca dei atenção pra isso, sabe? Eu criei uma espécie de barreira, que isso não me atingia… o mais triste da história é que colegas mulheres fomentavam isso. Bastava tomar um furo, que dizia: Ah, ela conseguiu porque ela está lá num tal lugar, porque ela conhece o fulano, porque, sabe, tem facilidades…. Não, era trabalho duro. Eu suava muito, eu batalhava muito, eu ficava na rua da uma da tarde às cinco, delegacia por delegacia, distrito por distrito, sabe?! Buscando informação, indo nos locais, os fotógrafos que trabalhavam comigo, eles tinham um pavor, porque eu era a primeira repórter a sair do jornal pra rua, e a última a voltar. Os motoristas me odiavam porque eles tinham que entrar em cada quebrada, e eu batia o pé até… Eu brigava com a equipe para fazer matéria, eu brigava com as pessoas para produzir mais. Eu fazia oito, nove matérias dia na Tribuna, sem pauta.”
Ao longo de sua carreira, Mara acumulou histórias incríveis, como a vez em que um traficante, arrependido após a morte de um familiar, lhe entregou um mapa com a localização de bocas de fumo e traficantes de uma vila. Mara, sempre corajosa, foi sozinha ao encontro do traficante, usando um lenço na cabeça e óculos escuros para não ser reconhecida.
Mara também se emociona ao relembrar a história da menina Bruna, sequestrada e levada para Israel. Graças à persistência de Mara, que publicou diversas matérias sobre o caso – quando todos os outros jornalistas já nem queriam mais receber a mãe da menor – fez com que a garota fosse encontrada, e voltasse para os braços da mãe. E essas são apenas algumas poucas histórias entre centenas, que só mesmo essa pioneira poderia contar.
RECONHECIMENTO
Recentemente, a jornalista curitibana foi escolhida para ocupar a cadeira nº 39, da Academia Feminina de Letras do Paraná, que tem como patrona Pompília Lopes dos Santos, fundadora da Academia, e como primeira ocupante Lygia Lopes dos Santos. A jornalista será a segunda. Mara Cornelsen foi escolhida por unanimidade, e sua posse está prevista para abril de 2025.
Homenagem mais que merecida para uma trajetória tão inspiradora. Mara Cornelsen é uma mulher forte, corajosa, determinada e talentosa que deixou sua marca no jornalismo e no rádio paranaense. Uma profissional que, além de desbravar o mundo do jornalismo impresso, em uma área que poucas mulheres conseguiram êxito, conquistou seu espaço nas ondas do rádio, levando informação, emoção e confiança aos ouvintes. Mara Cornelsen é uma das entrevistadas que tivemos a alegria e a honra de ouvir para o projeto de roteiro do documentário “Vozes Pioneiras: A Influência e o Papel das Mulheres na História do Rádio Paranaense”